Saturday, October 06, 2007

A K e o Y

A Presidência da República fez um espectáculo comemorativo do 5 de Outubro com Katia Guerreiro, apoiante e mandatária de qualquer coisa durante a campanha eleitoral.

Carmona Rodrigues também usou dinheiro da Câmara de Lisboa para fazer espectáculos com o seu apoiante Toy.

De muitos casos semelhantes se vai ouvindo falar no nosso jardim à beira-mar plantado.

Suponho que é esta a atitude educativa que melhor define a detenção do poder em Portugal: usar os bens públicos para servir os amigos.

E a amizade é uma coisa muito bonita.

Vão passar muitos anos, séculos talvez, antes que o espírito pimba que enforma as nossas 'elites' perceba que um K e um Y não chegam para parecermos modernaços.

E que antes de falar da importância da educação se perca um bocadinho a pensar na importância da cidadania e da honestidade.

Thursday, September 13, 2007

Público Embolado

Estamos mal de adjectivos. Há falta. Nota-se que a procura excede a oferta e, num certo sentido, pode mesmo falar-se em crise. Hoje em dia é difícil encontrar um bom adjectivo. Passam-se semanas sem que apareça um que nos faça olhar duas vezes. Mesmo aqueles que eram considerados adjectivos caros, passaram a ser usados no dia a dia e perderam o valor e o interesse. Gastaram-se. Eu já nem sei, quando me apercebo que estão a usar um adjectivo assim para o pesadote, se estão a adjectivar ou se estão a gozar comigo. Provavelmente é uma questão de gradação. Talvez haja falta de níveis (falta de nível há de certeza). Talvez o problema não esteja no adjectivo mas na força com que é usado. Que fazer quando uma frase, uma simples frase, escrita às três pancadas e deixada a correr num texto de prosa taxada à sílaba, pode ser apelidada de extraordinária? Suponho que não se pode fazer nada. Tem que se esperar que a poeira assente e a ganga hiperbólica se gaste com as múltiplas lavagens. Mas por enquanto há que aguentar. Parece que vivemos no topo do mundo. Tudo o que acontece, mesmo que banal, e temos que reconhecer que à vista desarmada é tudo banal, é adjectivado com o topo de gama da adjectivação. Nem seria mau se fosse por brincadeira. Se fosse uma sofisticada ironia (eu leio sempre como se fosse uma sofisticada ironia para me proteger dos efeitos secundários depressivos). Mas o colosso hoje pode não passar de um miserável engano sobre multidões. Um vermezinho que consiga o olhar simultâneo de uma multidão hipnotizada, é um monstro mediático. Como não há muitas coisas a serem propriamente alguma coisa que valha, há que adjectivá-las superlativamente para que passem a existir nos intervalos do seu próprio vazio. Daí o consumo excessivo de adjectivos. Daí a falta. Daí a sensação de irrealidade quotidiana de que já há uns anos o Eco fazia eco. Tive um amigo, que talvez ainda tenha se não se perdeu num comparativo de superioridade, que todas as vezes que me encontrava tinha para contar a melhor anedota que alguma vez ouvira. Como ele estava adiantado no tempo. Este agora é um tempo em que temos que viver aos saltinhos, com gritinhos de prazer à mistura. Cada momento superlativo do anterior.

Suponho que uma das razões para a crise de adjectivos é a proliferação de jornais gratuitos: muito em breve já ninguém estará disposto a pagar por um bom adjectivo, confundido pela mata densa de adjectivos menores. Soube há pouco que das redacções do Público e da Bola vão sair, até ao fim do ano, as notícias necessárias e suficientes para um novo gratuito. Não querendo deixar de colaborar em tão benemérita empresa, proponho daqui, para escolha de quem de direito, que o novo jornal se chame Bola Com Creme ou Público Embolado...

Wednesday, August 08, 2007

Comparação

Sabes? Não é possível chegarmos aos sonhos dos outros. Nem aos nossos. Mas ainda menos aos dos outros. Cada gesto que construímos na particularidade do nosso entendimento, pressupõe uma história, e medos muito próprios. E não sabemos nada dos sonhos dos outros.
No estado puro o pensamento talvez dispensasse a informação do tempo. Mas nunca sairia do seu lugar original. Vogaria em círculos sobre a mesma paisagem, e se não chegasse ao tédio seria por desconhecimento. Mas o estado puro é também ele um sonho, ou mais propriamente um pesadelo.
Na realidade, chamando realidade a este lugar que habitamos com os nossos sonhos, há em cima de cada desejo um peso extravagante de formas, sentidos e perdas. Tudo junto numa bola de trapos que permanece inquieta entre os dedos.
Mas aos sonhos dos outros não chegamos. Arquivamos as frases melhores e sorrimos quando a memória atraiçoa mais um momento que se perdeu. Sobre esse estrado de emoções constrói-se outro andar da torre da nossa Babel interior. Claro que o objectivo é o céu.
Que fazer quando, sobre o tabuleiro, parecem esgotados os movimentos que garantem a vitória? Como viver sem essa vital substância da comparação? Como permanecer no lugar em que não se é sempre o primeiro? Como sentir alguma coisa quando sobre o sentir paira sempre a ave abrupta da imposição?
Quando nasci não me questionei sobre a liberdade. Tinha outros propósitos, e alimentar-me era o que me tornava vivo. Ao pé de mim passou o tempo e houve um instante em que devo ter sentido que o vento era mais forte do que eu. Terá sido aí, pelo acaso de um momento, que me apercebi da estranheza do lugar. Nada do que tinha pensado era autêntico, e olhar para as coisas com atenção não era suficiente para as ver.
Haviam outras formas e outros mundos, outras idades e outras estranhezas, outras manchas e muitos outros sonhos. De cada lado da certeza surgia uma verdade diferente e a cada uma delas eu poderia designar suprema se isso fosse a minha vontade. Também porque em todos os sentidos a minha designação era inútil e a minha vontade etérea.
Nasci num tempo em que já todos os objectos tinham nome. Mesmo as coisas que não se sabia o que eram, eram coisas. E às coisas que eu ainda não sabia que eram coisas chamava aquilo. E o tempo passei-o eu todo a aprender os nomes das coisas, a saber de cor as cores e o números e a tentar arranjar outra coisa que o dicionário ainda não soubesse.
Tempo ganho é tempo perdido de outra forma. O passo que se dá para a frente já tem o seu ocaso no próprio passo. Mas nenhum sonho o distingue de outro. Nenhuma comparação.
Sabes? Não é possível chegarmos a sonho nenhum. Nem aos nossos nem aos dos outros. Este lugar onde ocorrem os nossos sonhos é tão irreal como os sonhos que temos deste lugar. Depois de virarmos uma esquina há sempre outra esquina para virar. E, por causa dos sonhos, as esquinas são sempre outras. Isto é o que se sabe. Haverá outras coisas que não se sabem. O que dói muito a dizer.
Aquilo que eu queria, aquilo que teria feito as coisas parecerem, segundo os meus sonhos, diferentes, era a hipótese, ainda que remota, de haver algum sentido oculto, coisa ainda sem nome, que valesse a pena procurar. Essa seria a razão mais que suficiente para andar por aí, no maior dos tédios, a alimentar o corpo.

ikivuku

Tuesday, March 13, 2007

Fronteira

Não tenho contacto com o infinito: imagino-o.
Naquilo que posso, tolero-o.
Mas o que eu vejo e sinto,
o que preenche os interstícios urgentes do vazio,
o que marca todos os passos que dou e submete a minha identidade,
são os limites.

A partir de um ponto, o abismo.
A partir de um momento, a indiferença.
A partir de um fogacho, a luz.
A partir de um sonho, a verdade.

Localizo-me, por isso, na fronteira.
É aí que mudo as minhas vestes
e me enredo nos dilemas de ser.
De um lado está, pouco nítida, a serenidade,
do outro, atormentada, a beleza.
Apenas um efémero fio
entre o apelo da trágica alegria
e o macilento olhar do náufrago.

A lebre e a tartaruga perseguem os meus paradoxos.
Há quem saiba que não sabe
e há quem não saiba que sabe.
Cada passo pode aproximar ou afastar e nunca saberemos.
Há um lado de dentro e um lado de fora que se conhecem
e uma luta permanente por não haver luta permanente.

Não sei nada do infinito.
Os meus encontros diários são com o limite das coisas.
E falam-me de potência e de futuro,
de dignidade e de subtileza.
Engrossam em cada instante novas redomas
onde guardam os testemunhos do esquecimento.

Vivo e convivo com os limites que não entendo.
E percebo tão bem esse infinito que me escapa...

Ikivuku

Sunday, January 21, 2007

Aborto ou desmancho?

A grande disputa que vai ocorrer no referendo à interrupção voluntária da gravidez (IVG), não é entre o “sim” e o “não” mas entre o aborto e o desmancho.
O aborto que se promete, no caso de ganhar o 'sim', vai ser rigorosamente vigiado. Os hospitais, ou as clínicas, que venham a incluir nos seus serviços a prática do aborto, vão preencher papéis em triplicado, mandar reconhecer a assinatura, exigir um fiador para as questões financeiras, um tutor para as questões de responsabilidade social, vão passar factura dedutível no IRS e inscrever no enigmático algarismo que vem a seguir ao número de BI a quantidade de abortos oficiais.

O desmancho não tem nenhuma destas burocracias. É absolutamente incógnito, sigiloso e anónimo. Acabado o acto, é como se nada tivesse acontecido. Ninguém em lugar algum vai saber, a não ser que a utente, num desvario, resolva expor-se num movimento pró-"sim", dizendo alto e bom som: eu fiz!
O aborto é a interrupção de uma vida em potencial, a anulação de um Einstein, de um Hitler ou de um zé-ninguém. O desmancho é geralmente a salvação de várias vidas, de famílias inteiras em perigo de caírem na lama.
O aborto é um pecado grave, universalmente condenado. O desmancho para todos os efeitos não existe. E o que não existe não é confessável.
O aborto não tem tradição em Portugal. Falta-lhe estatuto e tem um certo ar intelectual de esquerda, cheira a enxofre por todos os lados.
O desmancho é, salvo seja, o pão nosso de cada dia. Tem resolvido o problema a inúmeras famílias, mantendo-as unidas na fé e na alegria. Está próximo do povo, convive com ele em cada esquina e promove a tão necessária cumplicidade que define a cultura tradicional.
No caso improvável de, no referendo, vencer o "sim", as dificuldades de implantação seriam inultrapassáveis.
Quer isto dizer que vença o "sim" ou o "não", os métodos tradicionais continuarão a ser os preferidos, pelo que é necessário que o governo se prepare para abordar esta questão de uma maneira mais pragmática. Eis algumas sugestões:
- alguns dos milhões que vêm da Europa poderiam ser entregues directamente aos sacos azuis das autarquias, para estas, da maneira mais discreta possível, subsidiarem a compra dos desinfectantes que tanta falta fazem nos lugares de desmancho;
- permitir a atribuição da ISO9000 a todos os vãos-de-escada que apresentem elevados níveis de sobrevivência;
- instituir um prémio anual para os lugares que tenham menor número de complicações pós-desmancho;
- isentar do imposto de selo todos os proprietários de vãos-de-escada, bem como atribuir-lhes licença para aquisição de gasóleo agrícola;
- fomentar a instalação de eco-pontos devidamente preparados para lixo biológico;
- favorecer as sinergias sociais incentivando a concentração de outros negócios tradicionais paralelos.
O respeito pela vontade popular e pela tradição é uma conhecida fonte de felicidade e harmonia. Ao contrário do que se diz, o sistema vigente é o que melhor protege as famílias de serem punidas, de o seu nome, ó ignomínia, ser dito na praça pública.

ikivuku

Saturday, January 13, 2007

Dezanove versos

O Finúrias criou um desafio com dezanove palavras... e esta é a minha leitura...


FORMAS com as tuas mãos uma escada com

DEGRAUS que levam o pensamento ao rio onde a

ÁGUA em que se lava o teu reflexo é o

ESPELHO de um rosto em que brilha o desejo de

SEXO de anjo que ilude o fim desafiando a

MORTE e o poder e a vida à flor da

PELE que encobre o sentido da voz chegada em

ECO mudo de vibrações carregando a saudade em

RETALHOS dominados por intenções equívocas de

AUDÁCIA como aquelas que deixaste veementes na

TELA quando com os teus pincéis alegres substituías o

NEGRUME translúcido do medo por cenas vivas de

CAFÉ concerto com dançarinas inebriadas de

GESTOS sob a frieza cortante do vento

NORTE e eu sentado à espera que a

VOZ te não doa e a ligeira doçura da

VIDA se erga violenta e decidida contra a

PEDRA gasta de uma muralha apoiada nos

SENTIDOS proibidos do tempo em que

FORMAS com as tuas mãos uma escada com
...

ikivuku

Thursday, January 11, 2007

E o meu futuro foi aquilo que se viu

O amigo Japinho fez-me interromper a hibernação para me lembrar do que é que queria ser quando fosse grande quando era pequeno. A seguinte é uma das versões.

Acabamos por ser sempre o que queríamos ser em crianças mas não tínhamos nem dados nem discernimento para descrever. Isto porque o querer é uma força, e no caminho que os dias de hoje nos reservam apenas impera a eficiência da vontade que cada um tem. Admito portanto que na origem, nos primeiros anos, no tempo em que ainda pensava sem pensar que pensava, a minha vontade incógnita era, já então, ser um equívoco. Mas não era possível, pela força das circunstâncias, assumir uma vontade incompreensível e irrealizável dentro dos padrões que são geralmente atribuídos às crianças. Dizia, por isso, que quando fosse grande, quando tivesse assumido essa idade mítica de já saber o que queria, haveria de ser o inventor da harmonia, da equivalência e do movimento perpétuo. Parecia simples e evidente, como continuam a parecer simples e evidentes os meios para criar e manter uma proximidade formal entre a realidade e a ficção.
Os desejos manifestados na infância são voláteis como os dias e os brinquedos. Nos livros do tio Patinhas, o professor Pardal tinha no laboratório um cartaz a anunciar os seus serviços que dizia: inventa-se qualquer coisa. Devo ter nascido aí no meio do paradoxo dessa frase, e nunca mais recuperei a lucidez.
Descobri já há bastante tempo que o que faz a particularidade de cada indivíduo são as suas doenças, as suas inaptidões para a norma: fôssemos todos sãos e integrados e seríamos espécie extinta de tédio. Olhar para as coisas é a melhor maneira de não as ver e cada verdade pode estar mesmo ao lado do óbvio embora o mais certo seja estar em lugar nenhum. Vale então a infância como o lugar onde ainda havia uma hipótese para a verdade. As frases eram curtas e precisas e cada palavra dizia apenas uma coisa. Brincámos com isso com toda a seriedade até que um dia fomos colocados no mercado...

Passo o trabalhinho a três amigos que andam também com um problema de expressão: Torcato, Lino e Jakim.

Ikivuku